Poema "Autodescoberta: A Rotina, a Saudade e a Descoberta do Eu Autêntico
A inusitada relação entre a saudade e o autismo em uma jornada pessoal
Capa do livro de "De Sombras e De Lua", de Deisi Jaguatirica
Descoberta
Sobre o corpo o espirito não pesa
abarrotado de princípios obsoletos
pois exilei meus valores prediletos
muito além de minha natureza.
Sonhos também foram descartados
visto que perdida a sua serventia
e consumiam toda a minha energia
para preservar os seus significados.
E, como se fosse casa sem ornamentos,
eu observo minha própria estrutura.
Suavemente assimilo a essência pura
que constitui meus reais fundamentos.
Absorve-me a energia dos elementos
constituintes dessa ampla serenidade
e finalmente desfruto plena liberdade
de desnudar e contemplar sentimentos.
A Rotina, a Saudade e a Descoberta do Eu Autêntico
Existem algumas "pílulas" dispersas pela internet — em especial nas redes sociais com foco em vídeos curtos — de que o autista não sente saudade e está restrito a uma rotina. Curiosamente, este poema que escrevi, diferente de outros presentes em "Retratos das Sombras", me remeteu a essas duas questões.
A meu ver, a rotina é parte de um sistema de controle, criado para lidar com as incoerências e instabilidades da natureza humana e, por conseguinte, da sociedade. Nem sempre a rotina se traduz em rituais e cronogramas rígidos. Posso assegurar que a mulher neurodivergente, habituada a camuflar suas diferenças e o sofrimento decorrente dessa camuflagem, cria rituais mentais alicerçados em um código ético. E sente uma saudade indescritível de um tempo e de um lugar inexistentes. E, talvez, acima de tudo, sente saudade de si.
A Busca por um Lugar Inexistente
Talvez o lugar e o tempo indescritíveis sejam, na verdade, esse senso de eu verdadeiro. Há uma necessidade de retorno ao centro, escavando o eu tolhido sob camadas de máscaras, criadas para diferentes ocasiões e atordoado por um narrador interno que, no intuito de ajudar, acaba por enfatizar déficits e inconveniências.
Esse processo pode ser alinhado com a ideia do shutdown. Períodos de reclusão e de cansaço que demandam um voltar-se para dentro e um aquietar-se são comuns na minha vida. Sou obrigada a desistir de organizar os pensamentos e ceder ao burburinho até que ele cesse sozinho. Antes desse fechamento completo, tenho vontade de estar na água e faço planos de abandonar o mundo civilizado.
Ser uma ilha, vivendo off-grid, foi um sonho retomado muitas vezes de diferentes formas. Hoje, ele esbarra na minha incapacidade de total autossuficiência: eu não dirijo e talvez nunca o faça, e viver longe dos trilhos da civilização sem ter plena capacidade de ir e vir não é libertação.
O que importa é que esses movimentos de fugir da realidade e buscar isolamento só começam na fantasia do isolamento e no desejo de estar na água. Nada nos isola mais do mundo exterior do que estar na água, alheios aos sons e movimentos, concentrados apenas em respirar. Nada acalma mais o peso de existir do que flutuar na cadência das águas, como se no ventre do mundo.
O Shutdown como Reset
Mas esse movimento de ir para dentro de si, buscar refúgio sensorial e distância do mundo, também cessa. E o resultado dessa cessação muitas vezes parece ser a depuração. Muitas inutilidades são dissolvidas pela água — real ou psíquica —, e muitas coisas retomam sua verdadeira dimensão pela distância. As máscaras se descolam da face por um tempo e permitem visualizar feições descoradas, mas reais.
Voltar desse entorpecimento necessário é despir-se de algo, porque o cérebro neurodivergente nunca para de fato. Ele ensurdece, congela as sinapses até que a normalidade neurológica possa ser restaurada. E as conexões sinápticas parecem se restabelecer em já em alta velocidade. O que antes estava embaralhado e causou o travamento se desenrola com rapidez, e os significados se formam sem esforço. Com isso, decisões são tomadas e cortes são feitos. Tudo de forma muito simples e ponderada, embora pareça altamente intuitivo e quase sobrenatural, como se um anjo soprasse as respostas.
Isso não faz do shutdown uma bênção. Trata-se de um "bug" neurológico que se impõe sem respeitar a rotina que preservaria uma percepção superficial de normalidade. Ele nos torna autômatos por um tempo e, nessa autoativação, despende toda a pouca energia, o que se reflete na memória. Isso nos torna contraditórios, ao ostentar memórias extremamente vívidas ao lado de completos apagamentos.
O corpo é treinado para suportar a máscara e submeter o espírito. Quando o corpo já não pesa, é porque houve o desligamento. Os valores são outros quando retornamos aos sentidos, e assim permanecemos por um tempo, até que a sobrecarga gradativa derrube o sistema de novo.
O que é uma bênção é ter a oportunidade de reavaliação constante. São pequenos "resets" que vão tornando a vida possível. Por isso, eu acho — sim, acho, da minha perspectiva e vivência — que um autista nível 1 tem mais possibilidades de não se congelar em uma rotina rígida e na rigidez cognitiva que aprisiona. Isso o mostra mais adaptado a um senso de normalidade, o que, em um mundo que se pauta pelas aparências, acaba sendo mais uma prisão e uma ferramenta para a invalidação do diagnóstico. E isso torna a vida do autista nível 1 mais difícil.
Ainda vivemos entre a frigideira e o fogo. Mas, como escrevi em algum poema anos atrás, "sonho que sou a água".