Desabafo
Do caderno da adolescência, "Desabafo" em duas versões: uma alma autista. Veja o que quiser, sinta a expressão.
( versao 2025 ) Te entrego este sonho morto meu pai, pai do tempo e do caos O pagamento generoso e farto para inesquecíveis dias maus que tive até o tempo presente. O prêmio pela minha virtude neste mundo cego e delirante que, convincente, bem ilude. E se me tens perante ti de joelhos não me dobro em fútil reverência. O propósito deste espirito velho dispensa um gesto de aparência Esta genuflexão denota cansaço e sustenta meu inconformismo por ter sido tolice o meu esforço de ter algum êxito nesse abismo Este relato rude, descontrolado substituindo a pureza da prece mostra meu corpo vilipendiado sem ter o pouco de que carece Não expressa desejo de clemência E sim uma genuína sede de justiça. Foi o que primeiro notei a ausência É o que minha alma lamenta e cobiça
Redescobrir o velho caderno tem sido surpreendente. Confesso que sempre o julguei indigno de exposição, a ponto de registrá-lo na Biblioteca Nacional há quase três décadas como 'Retrato das sombras'. Por alguma razão, acreditei que essas sombras deveriam permanecer ocultas. Hoje percebo que só as enxergo porque projeto luz – a famigerada luz da razão – para tentar processar sentimentos e sensações avassaladoras, muitas vezes desprovidas de sentido para mim.
Embora ‘Desabafo’ seja uma prece confrontadora dirigida a um criador em cuja existência eu relutava em acreditar, paradoxalmente temendo não fazê-lo, a releitura me trouxe uma reflexão perturbadora: o possível elo entre o autismo nível um de suporte e os alarmantes índices de suicídio. Grande parte do tempo, a vida se apresenta como um ruído exaustivo, uma movimentação caótica, algo que creio ser ainda mais intenso e difícil de assimilar nas primeiras décadas. Sinto que gastei ao menos trinta anos me adaptando a esse ruído e movimento, e outros quinze tentando aprender a socializar – aprendizado ainda incompleto. Na verdade, um medo paralisante me isolou em uma torre focada na escrita e ilustração. Contudo, paradoxalmente, me sinto feliz e realizada, mesmo que o fim do mês represente um desafio financeiro e a tinta esteja quase no fim. Curiosamente, nutro uma fé estranha e reconfortante na providência, que até hoje me poupou da fúria divina diante da petulância dos meus versos ou da minha recusa em participar do mundo em termos que não sejam os meus.
Segue-se o poema em sua forma original, como escrito em algum dia entre 1992 e 1996, durante a adolescência, fase de intensa busca por coerência e sentido, tendo como faróis poéticos Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira. E, à semelhança de Bandeira, "Eu faço versos como quem morre."
Desabafo ( versão adolescência – 14 a 18 anos) Te entrego este sonho morto meu pai, pai do tempo e do caos O pagamento generoso e farto para inesquecíveis dias maus Que tive até o tempo presente. O prêmio pela minha virtude neste mundo cego e delirante que, convincente, bem ilude. E se me tens perante ti de joelhos não me dobro em fútil reverência. O propósito deste espirito velho dispensa um gesto de aparência Este gesto além de denotar cansaço É também símbolo de inconformismo por ter sido tolice o meu esforço de ter algum êxito nesse abismo Este relato rude, descontrolado substituindo a pureza da prece mostra o espirito muito cansado de não ter o pouco de que carece E não manifesta desejo de clemência E sim um genuíno desejo de justiça. Foi o que primeiro notei a ausência É que minha alma lamenta e cobiça